quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Portais Efetivos - A Estrada


Sendo passagem de milhares de futuros incertos, possibilidades desconhecidas, brigas eventuais, destinos trágicos e inseguranças, a Estrada sabia de muita coisa sobre muita gente. Se existe uma ferramenta eficiente para julgamentos definitivos, era a Estrada. A Estrada fazia parte dos Portais Efetivos, meios pelos quais o mundo inferior tomava suas prometidas almas e as direcionava para o lugar onde pertenceriam daquele momento em diante, basicamente por toda a eternidade. Se você sabe que cometeu algo imperdoável, deve ficar longe dos Portais, do contrário comprará uma passagem só de ida para o já conhecido inferno. Acontece que a maioria das pessoas não sabe da existência dos Portais até passar por um, mas aí já é tarde demais e ninguém fica sabendo de qualquer forma. Quem nunca cometeu crimes imperdoáveis e passa por um dos Portais percebe absolutamente nada. Era um sistema eficiente estudado pelos mais importantes nomes demoníacos, e os créditos da estrutura de cada Portal eram discutidos fervorosamente até os dias de hoje.

Os Portais trabalhavam por si mesmos, e todos tinham egos enormes, refletidos de seus próprios construtores. O pessoal lá embaixo tinha um certo probleminha nesse aspecto. Hoje contarei uma parte da história de quando o sistema dos Portais falhou e se abriu para um inocente, o pobre estudante John Spencer.

Era um final de tarde quente no Arizona, e John havia optado pela rota 66 para voltar ao seu alojamento naquele dia. Não costumava usar aquela estrada, apesar de nos últimos anos ela ter voltado a ativa depois de um longo esquecimento causado pela construção das novas vias de trânsito rápido. O calor o estava deixando demasiado eufórico, e não parava de repetir mentalmente palavras grotescas sobre si mesmo por ter esquecido de consertar o ar condicionado do carro. A procrastinação te pega no final das contas, rindo da sua cara por ter se achado esperto ontem. Abriu mais a janela, girando aquela manivela que, para completar o cenário, emperrava constantemente. John imaginava se algum dia passaria por algum sufoco no qual ­­necessitaria de agilidade e a maldita manivela seria a culpada. Ou o ar condicionado.

Passaram-se mais vinte minutos de agonia, suor misturado com frustração pela manivela emperrada. Se ao menos alguma estação de rádio funcionasse, mas parecia que naquele ponto naquele momento nada estava funcionando.

A frustração já havia atingido níveis intergalácticos quando John sentiu o carro afundar tão rápido e bruscamente que não duvidaria se tivesse deslocado alguma parte do pescoço. Olhou para trás e viu uma rachadura exageradamente grande na estrada, se perguntando como não tinha visto aquilo. Prosseguiu, voltando a velocidade anterior depois de um minuto. Seu pescoço ainda doía quando sentiu outro solavanco, dessa vez mais forte. Exclamou mais assustado do que irritado, percebendo depois dos primeiros segundos de choque que parecia ser a única alma viva em quilômetros. Se o pneu estivesse furado, estava ferrado. Talvez por causa dos solavancos ou seja lá o motivo, o rádio começou a tocar, tornando aquele terror sucessivo. John não sabia muito bem como sua mente funcionava no ápice do desespero, mas aparentemente raciocinava mais rápido do que o normal, pois reconheceu a música como sendo Lookin’ Out My Back Door do Creedence Clearwater Revival. A reconheceu antes do rádio começar a travar e a música tocar como um disco arranhado, repetindo uma palavra de forma enlouquecedora. Ele praticamente socou o botão de desligar, notando que agora não sentia mais calor.

Continuou dirigindo, agora mais cauteloso, com os olhos grudados no chão da estrada a sua frente. Percebeu mais adiante um estranho risco preto cruzando a estrada, e quanto mais se aproximava o risco aumentava em largura. Quando atingiu uma distância suficiente para identificar o que raios era aquilo, parou o veículo no meio da estrada. Já estava avançando a uma velocidade baixa, portando foi uma parada suave. Encarou aquela rachadura grossa e bizarra, que se estendia até onde seus olhos podiam alcançar no deserto ao seu lado. Aquilo era geograficamente impossível, pensou, porém não sabia de fato se era, mas na sua mente era, pois nada em sua vida tinha sido mais estranho do que aquilo. Uma estrada com rachadura daquela gravidade deveria ser interditada, porém John não passou por nenhum tipo de aviso. O que diabos estava acontecendo?

Desceu do carro depois de dois minutos de paralisia completa, parando um pouco adiante, com medo de avançar e ver a profundidade daquilo. Ele já esperava o que ia ver, era óbvio que aquilo era meio sem fim, uma queda infinita num abismo aleatório no meio do nada.

“Se eu fosse você dava meia volta.”

John podia ter morrido naquele instante, se alguma vez chegou a sentir que era a sua hora, tinha sido naquele momento. Virou a cabeça na direção da voz, o coração dando ponta pés violentos em seu peito. Um homem loiro de meia idade usando camisa xadrez e calças jeans o encarava com os braços cruzados e um sorriso com o queixo levemente projetado para frente. Aquele cara estava ali o tempo todo?

“Desculpe?”, conseguiu murmurar John, andando para trás e sentindo seu carro nas suas costas.

“Vai aumentar, é melhor dar meia volta.”, e, sem aviso prévio, se abaixou, pegou uma pedra e jogou na direção da rachadura escura. John não conseguia se decidir se estava com mais medo da rachadura ou daquele cara.

Preferiu não responder, se você responde de volta pra essa gente louca eles acham que você está incentivando e continuam, ouviu a voz de sua avó Betty na cabeça. Deu a volta no carro e entrou no lugar do motorista.

Quando começou a dar a ré, notou que o final de tarde já estava para se tornar noite, com o sol se pondo no horizonte rachado. Fez a meia volta e seguiu pelo caminho de onde tinha vindo, tentando se concentrar e pensar que caminho faria para passar para o outro lado daquela maldita estrada. Aquela rachadura era tão longa que poderia facilmente atingir o estado todo. Ou o mundo.

Dois minutos refazendo seu caminho e a temperatura caiu bruscamente, obrigando-o a tentar subir o maldito vidro, mas a maldita manivela continuava emperrada.

Ao voltar sua atenção para o trânsito inexistente, teve dois segundos de vantagem e absolutamente tudo ficou escuro. Tudo.

E então John não viu mais nada.

Esse foi um conto originado da proposta 29 da Oficina de Bolso. Na verdade foge bastante da ideia proposta, mas meu cérebro começou a trabalhar e saiu isso. Na minha cabeça esse conto possui continuação, portanto vamos orar para eu praticar o acabativismo dentro de mim.


domingo, 17 de agosto de 2014

Substancial

Já acostumei-me a essa previsível solidão repetitiva, movida por responsabilidades maiores que minha própria massa. Fui avisado de que não seria fácil, porém aceitei sem pensar duas vezes. A oportunidade de prover vida é indescritível, mas tentarei resumir algo próximo ao que sinto. Na verdade, mal sabia que poderia de fato sentir algo além da enorme satisfação. Nunca fui apresentado formalmente a alguém, apesar de todos saberem meu nome. Já vi tanta coisa, fui cenário de nascimentos, conquistas, decepções, mortes. Tentei deixar as situações desagradáveis mais quentes, ou melhor, menos frias. Sem cobrar nada em troca. Até porque, quem iria se atrever a chegar perto de mim para pagar?
Sou útil mantendo distância. Nunca experimentei aproximações de nenhum tipo, aliás, como é a sensação? Conte-me, mas daí mesmo, não precisa chegar perto. Acredite, é para seu próprio bem.
Poucos foram os que tentaram chegar perto de mim. Os que se encontram mais próximos são tão perigosos quanto eu. 
Eu destruo, crio, forneço. Eu observo de longe. A observo.
A observo há tanto tempo. Ela provavelmente nem sabe que me importo tanto. De certa forma a invejo. Ah, mais um sentimento. Eu na verdade queria fazer parte daquilo. 
O ano terrestre era 1969. Para mim não faz diferença. Estarei sempre aqui, desenvolvendo o que me foi designado. Brilhei mais naquele dia. Fiquei fascinado, porém me contive. Emoções fortes podem causar desastres, no meu caso. No de vocês também, foi o que ouvi dizer.

Assisti àquele inesperado acontecimento da segura distância de sempre. Se tivesse uma perna, a estaria balançando impacientemente. A preocupação estava queimando em minhas entranhas. Mais do que o normal. Sei que tenho mania de controle, mas sou responsável por tanta coisa que não consigo simplesmente me desligar.
Então observei, morrendo de ansiedade. Cada segundo que passava eles se aproximavam mais, e eu me perguntando o que aconteceria. Querendo ser ela, querendo sentir o contato que estava prestes a acontecer.
Finalmente se encostaram, e se eu tivesse unhas as roeria.
A observava já há tanto tempo, conhecia todos os seus detalhes e agora outros a estavam explorando. Tendo o que nunca tive, o que nunca terei.
Eu também queria explorar e ser explorado. Entretanto, minha função era prover o essencial a distância. Concordei com essa tarefa e nunca poderei experimentar outras. O que faço ninguém mais sabe fazer, pelo menos não nessa região. Porém, quando aceitei, tive que abrir mão de quase tudo. 
Abri mão de quase tudo, sendo eu, agora, praticamente tudo!
Eu sou tudo, tendo nada.
Me contento há tanto tempo com minhas condições que não me atrevo mais a questionar. 
Mas saiba que, quando vocês me sentirem, estarei os observando com a ternura de alguém que ama mas entende que não pode ter o que quer para o bem de ambos.
A propósito, me chamo Sol.


Se você chegou até aqui, provavelmente leu meu conto. Gostei dele o suficiente para querer compartilhar com todos. Provavelmente postarei mais alguns, se estiver com vontade. Hehe.
Comentem o que acharam!

Esse conto faz parte do projeto Oficina de Bolso, volume Romance, escrito pela Andrea del Fuego.
Proposta número 6.

Até a próxima :)